Wednesday, March 20, 2024

“Antes só do que mal acompanhada”: defasagem escolar de beneficiários do Bolsa Família com idade entre 12 e 18 anos

Jakson Alves de Aquino

Domingos Sávio Abreu

Introdução

Durante a realização do EPDS na UFC no período de 2016 a 2017, planejamos uma pesquisa em duas etapas. Na primeira, os cursistas do EPDS realizariam entrevistas semiestruturadas e os dados seriam para compreender melhor a realidade das beneficiárias do Programa Bolsa Família. Assim, usando dados de 341 entrevistas semiestruturadas, encontramos evidências de que a presença de um cônjuge contribuía para o cumprimento da condicionalidade do Programa Bolsa Família (ABREU e AQUINO, 2017, p. 60). A segunda fase da pesquisa seria quantitativa, com o objetivo de testar hipóteses levantadas na primeira fase. Embora a violência doméstica não tenha aparecido como problema evidente, durante a elaboração e pré-teste do questionário, percebemos a necessidade de incluir perguntas sobre o tema.

Em outra oportunidade, fizemos uma apresentação panorâmica dos dados coletados com os questionários (ABREU e AQUINO, 2023). Neste trabalho, analisamos as respostas das entrevistadas sobre características comportamentais dos maridos ou ex-maridos e verificamos sua relação com o sucesso escolar dos filhos. Em relação a esse tema, as hipóteses que orientaram a elaboração do questionário e aqui testadas são:

  • H1: Maridos que investem tempo e recursos financeiros na educação dos filhos contribuem positivamente para o sucesso escolar dos filhos.

  • H2: Maridos violentos prejudicam o sucesso escolar dos filhos.

  • H3: A probabilidade de sucesso escolar dos filhos é maior se a mãe for solteira do que se for casada com marido que não investe tempo e recursos financeiros na educação dos filhos.

  • H4: A probabilidade de sucesso escolar dos filhos é maior se a mãe for solteira do que se for casada com marido violento.

Das quatro hipóteses, H3 e H4 somente podem ser respondidas por um estudo quantitativo.

Dados e resultados

Foram entrevistadas 624 mulheres beneficiárias do Bolsa Família que forneceram dados sobre 2878 crianças e adolescentes (AQUINO; ABREU, 2017). Após calcular as variáveis do nível da família, mantivemos no banco de dados somente os filhos das entrevistadas com idade entre 12 e 18 anos, o que resultou em 523 crianças e adolescentes de 346 famílias (acesse o código R para replicar os resultados).

Variável dependente: ano certo

Consideramos não estar no ano certo os alunos com, no máximo, 12 anos de idade no 6º ano do ensino fundamental, 13 anos no 7º ano e, assim, sucessivamente. Como é de se esperar, quanto maior a idade da criança ou adolescente, maior a proporção dos que se encontram em defasagem escolar (Tabela 1).

Tabela 1: Percentual no ano certo segundo a idade

Idade Ano certo
12 87
13 74
14 67
15 56
16 61
17 58
18 41

Para cada ano do ensino fundamental e do ensino médio, a Tabela 2 mostra qual o número de pessoas no banco de dados, as idades mínima, mediana, média e máxima, qual idade máxima para se considerar que o aluno está no ano certo e o percentual de alunos que não estão em defasagem escolar. Como nossa amostra inclui apenas alunos com até 18 anos, todos os que se encontram no terceiro ano do ensino médio estão no ano certo e, quanto menor o ano cursado, maior a proporção dos que se encontram em defasagem escolar.

Tabela 2: Idade segundo a escolaridade

N Mínima Mediana Média Máxima Máxima Certa % Ano Certo
0 1 15 15 15,0 15 0
F1 3 13 18 16,3 18 0
F2 3 12 14 13,7 15 0
F3 2 12 12 12,0 12 0
F4 11 12 13 13,8 18 0
F5 18 12 13 13,3 16 0
F6 78 12 12 12,7 18 12 65
F7 91 12 13 13,5 18 13 66
F8 75 12 14 14,2 18 14 65
F9 69 13 15 15,2 18 15 59
M1 82 14 16 16,1 18 16 70
M2 42 14 17 16,7 18 17 81
M3 46 14 18 17,4 18 18 100
S 2 18 18 18,0 18 18 100

Variáveis independentes

Nesta pesquisa, consideramos variáveis independentes as que indicam características comportamentais dos maridos ou ex-maridos das entrevistadas e que permitem testar as hipóteses levantadas.

Marido colabora (H1)

Nosso questionário incluiu várias perguntas que permitiam mensurar o grau de parceria existente entre a mãe e seu marido ou ex-marido no esforço para manter os filhos na escola. Como mostram os gráficos da Figura 1, entre as entrevistadas que se separaram do pai de seus filhos, há uma maior proporção de filhos no ano certo quando o ex-marido ajuda financeiramente e, entre todas as entrevistadas, a proporção de filhos no ano certo é maior quando o pai ajuda a levar os filhos para escola e quando há diálogo entre marido e mulher sobre como usar a renda da família.


Figura 1: Variáveis indicadoras de colaboração entre entrevistada e (ex-)marido

Isoladamente, cada uma das quatro variáveis é problemática por não se aplicar a todos os casos. Por isso, combinamos os resultados das quatro variáveis no cálculo de uma variável indicadora da existência da parceria entre pai e mãe para o sustento e educação dos filhos: consideramos que o marido ou ex-marido colabora para o sustento e educação dos filhos quando ajuda no sustento dos filhos ou os leva para escola, ou dialoga com a mulher sobre como gastar o dinheiro do Bolsa Família ou a maior parte do dinheiro da casa. Como mostra a Figura 2, a proporção de estudantes no ano certo é maior quando pai e mãe são parceiros na tarefa de sustentar e educar os filhos.

Figura 2: Não defasagem escolar explicada pela parceria entre a entrevistada e (ex-)marido

Violência conjugal (H2)

Como mostra a Figura 3, maridos ou ex-maridos violentos prejudicam o desempenho escolar dos filhos.

Figura 3: Violência do marido e desempenho escolar dos filhos

Status marital com referência a parceria (H3)

Como ficou claro na Figura 2 a colaboração financeira do marido ou ex-marido para o sustento e educação dos filhos contribui para um melhor desempenho escolar. Mas as hipóteses H3 e H4 são mais precisas e demandam a comparação entre a situação dos filhos de mulheres solteiras com a de mulheres casadas com maridos não colaborativos e violentos, respectivamente. A Figura 4 mostra o resultado da comparação necessária para testar a hipótese H3. Foram consideradas solteiras as mães que responderam ser solteiras, separadas ou viúvas; foram consideradas casadas as que disseram ser casadas ou estar namorando.

Figura 4: Defasagem escolar explicada pelo status marital da mãe com referência a parceria

Status marital com referência a violência (H4)

A Figura 5 foi produzida com procedimento similar ao da figura anterior.

Figura 5: Defasagem escolar explicada pelo status marital da mãe com referência a violência

Variáveis de controle

Mãe justa

Estão em maior proporção no ano certo os filhos das entrevistadas que responderam sempre tratarem todos os filhos de forma justa (Figura 6).

Figura 6: Defasagem escolar e forma de tratamento dos filhos

Sexo

Comumente, as meninas se adaptam melhor ao ambiente escolar e têm melhor desempenho do que os meninos. Isso também ocorre em nossa amostra (Figura 7).

Figura 7: Defasagem escolar e gênero

Idade

Como já vimos na Tabela 1, quanto maior a idade, maior a proporção de crianças e adolescentes em defasagem escolar. Esse resultado é também ilustrado na Figura 8.

Figura 8: Defasagem escolar e idade

Moradia

Morar em casa alugada pode indicar instabilidade financeira ou mudança frequente de endereço. Seja qual for o motivo, o fato é que crianças e adolescentes que moram em casa alugada têm maior chance de estar em defasagem escolar (Figura 9).

Figura 9: Defasagem escolar e tipo de moradia

Morar em uma casa confortável facilita a realização das tarefas escolares. Além disso, uma casa com maior número de cômodos por pessoa indica um nível de renda ou organização financeira favorável ao bom desempenho escolar. Há, de fato, uma correlação positiva entre estar no ano certo e morar numa casa com relativamente mais banheiros, salas, quartos e cozinhas por morador (Figura 10).

Figura 10: Defasagem escolar e qualidade da casa

Modelos explicativos com variáveis de controle

Depois de construir as variáveis independentes e de controle e de apresentar como cada uma delas se correlaciona com a variável dependente, nesta seção, apresentamos modelos explicativos mais completos, com todas as variáveis ou índices que se mostraram estatisticamente significativos nas seções anteriores. A análise de regressão permite verificar se a correlação encontrada entre uma variável independente e a variável dependente se sustenta quando controlada por outras variáveis.

A Figura 11 apresenta o resultado de uma regressão multinível, tendo a família como segundo nível. O número de casos é de 523 e o número de famílias, 346. Todas as variáveis analisadas nas seções anteriores se mantêm estatisticamente significativas. A regressão permite testar as hipóteses H1 e H2.

Figura 11: Análise de regressão multinível, tendo a família como segundo nível

As hipóteses H3 e H4 precisam ser testadas separadamente porque as variáveis independentes a elas correspondentes foram calculadas a partir de algumas das mesmas variáveis necessárias para testar as hipóteses H1 e H2. A Figura 12 mostra o resultado de uma análise de regressão em que é testada a Hipótese H3. Como previsto, comparados com os filhos de mães solteiras, os filhos de mães com maridos que não colaboram financeiramente têm pior desempenho escolar, mas o resultado não é estatisticamente significativo.

Figura 12: Análise de regressão multinível, tendo a família como segundo nível

A Hipótese H4 é testada no modelo apresentado na Figura 13. Comparados com os filhos de mães solteiras, os filhos de casadas com maridos violentos têm maior probabilidade de não estar no ano certo, o que corrobora a Hipótese H4 e justifica o título deste trabalho.

Figura 13: Análise de regressão multinível, tendo a família como segundo nível

Histórico de violência conjugal e consequências dos filhos estarem no ano certo

As hipóteses já foram testadas e, na sua maioria, corroboradas. Mas, antes de encerrar a análise de dados, vamos verificar algumas outras relações entre as variáveis que ajudam a ter uma visão mais completa da dinâmica familiar sobre o desempenho escolar.

Ter um marido não violento aumenta a probabilidade da entrevistada estar no primeiro casamento e ter tido um marido violento aumenta a probabilidade da mulher ter se separado e permanecer sozinha (Figura 14).

Figura 14: Histórico de relacionamentos e violência conjugal

É interessante observar que uma das consequências dos filhos não estarem em defasagem escolar é uma maior esperança das mães de que os filhos concluirão um curso de graduação no futuro. Embora a variável com efeito mais significativo seja a idade (quanto mais velhos os filhos, mais as mães se rendem à realidade de dificuldades em que sua família vive), a segunda variável mais significativa é a criança ou adolescente estar no ano certo (Figura 15).

Figura 15: Análise de regressão logística multinível

Conclusão

Neste trabalho, analisamos as respostas de entrevistadas sobre alguns temas relacionados à dinâmica da relação conjugal e verificamos qual o impacto de características comportamentais dos maridos sobre o desempenho escolar dos filhos. Por limitação de tempo e recursos materiais, apenas as mulheres foram entrevistadas; não entrevistamos os maridos nem os filhos e não visitamos as escolas em que eles estudavam. Das variáveis existentes em nossos dados sobre o desempenho escolar, o ano em que as crianças e os adolescentes estavam matriculados era a informação mais objetiva disponível. Também perguntamos se, na avaliação da entrevistada, seus filhos tiravam notas mais altas ou mais baixas e se faltavam mais ou menos do que os colegas, mas, obviamente, essa informação é tão ou mais dependente da personalidade da mãe quanto do desempenho escolar dos filhos.

Referências

ABREU, D.; AQUINO, J. Retratos de família: educação e Bolsa Família em quatro cidades do Ceará. Em: LOPES, V.; ABREU, D.; RIOS, G. (Org.). Quando o pouco é muito: educação, pobreza e percepção dos beneficiados do Bolsa Família. Campinas: Pontes, 2023. p. 17–28.

ABREU, D.; AQUINO, J. A. DE. Contexto familiar e cumprimento da condicionalidade de frequência escolar no Programa Bolsa Família no Ceará. Educar em Revista, v. 33, n. especial 2, p. 55–69, set. 2017.

AQUINO, J.; ABREU, D. (Org.). Pesquisa EPDS (Banco de Dados). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2017.


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